O meu tio Zé, na última vez que o vi com vida, contou-me de uma parte da família que só ele conhecia, talvez por ser o mais velho dos irmãos e ter mais memórias, além do dom natural de gostar de pessoas. Essa parte da família tem um sobrenome que nós perdemos na história da descendência por ser herança da minha bisavó e as mulheres perdem
naturalmente os sobrenomes para os homens.
Quando o meu tio morreu uma prima dessa parte da família que o conhecia bem quis juntar e conhecer o resto, os outros.
No sábado tivémos então um almoço de família em que, tirando os meus tios e primos direitos, eu não conhecia mais ninguém, aparte de uns amigos dos meus sogros que, vai-se a ver, também pertencem a essa família.
O ponto a reter deste almoço, e que tenho que explorar melhor, será o facto de a minha tetravó ser cigana e ter fugido do Redondo para aqui quando conheceu o rapaz por que se apaixonou, que tinha ido daqui para a ceifa no Alentejo. Diz que se apaixonaram e que quando acabou o trabalho ela fugiu com ele, que a trouxe no comboio, às escondidas, dentro de uma saca. Contam que se davam muito bem, que a população local a aceitou no seu seio, que era boa dona-de-casa e isso é que interessava. Diz que foram felizes e tiveram filhos e se aqui estou também o devo a eles. Falamos de um romance digno desse nome na segunda metade do século 19.
Destaque para a minha mãe que não pára de apontar os meus traços físicos quase puros que devo ter recebido da minha tetravó... Ahahahahahahah
No almoço vi também o que já sabia, a minha tia B. não se conforma por ter perdido o meu tio tão cedo. E chora e diz mal da médica que a quer encher de comprimidos, que não, que quer viver e sentir as coisas. Fala dele, da injustiça da doença, da rasteira da vida, da vida que lhes foi roubado, aos dois, pois sem querer romancear, é um facto que a ela lhe morreu um bocado. A minha tia diz que a tentam confortar, que tem os filhos e a neta mas isso revolta-a. Que os tem, sim, graças a Deus, mas não substituem o homem da sua vida. Acho lindo, comovi-me imenso.
Quando saiu, antes de todos nós, mais o que ele havia de ter gostado de ali estar, a última frase que me disse foi que "sofre por amor" e eu só consigo pensar como isto é bonito, neste mundo de relações ocas. Não consigo explicar-vos como pode um sentimento tão triste ser ao mesmo tempo tão bonito.
Hoje comemoramos, o R. e eu, 8 anos desde que nos casámos. Casámos pelo civil, sem festas, vestido de noiva e o sim no altar com a família toda a assistir enquanto pronunciamos "até que a morte nos separe"...
Casámos só os dois, sem mais ninguém a ver, foi quase segredo, uma coisa só nossa. Foi um dos dias mais cheios de sentido da minha vida. Tudo bateu certo, foi como validar a melhor opção de uma vida. Ao ponto de às vezes me questionar por tamanha sorte. Eu gosto de romances, de histórias de amor bonitas, gosto de ouvir, de contar, que me emocionem. Mas gosto ainda mais de o sentir. Todos os dias. Faz hoje 8 anos que fiz a coisa com mais sentido da minha vida. E que me faz acreditar um bocadinho no destino, no
está escrito.
A minha tia B. dizia-me este fim-de-semana: "nós discutiamos muito, ele lá tinha os defeitos dele e eu os meus, mas estávamos sempre juntos. Não pensei que fosse sofrer tanto, não percebo...".
Eu percebo! O "até que a morte nos separe", é uma tremenda mentira pois nem a morte, juro, nem a morte pode separar o amor de uma vida...